A que nos comissionou Jesus?

“Disse o Senhor: Quem é, pois, o mordomo fiel e prudente, a quem o senhor confiará os seus conservos para dar-lhes o sustento a seu tempo? Bem-aventurado aquele servo a quem seu senhor, quando vier, achar fazendo assim.” (Lc 12:42-43).

Pregação, testemunho e fazer discípulos.

Não há nenhuma dúvida de que a maioria das versões da “Grande Comissão” coloca a ênfase sobre a evangelização: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura” (Mc 16:15). O “Ide e fazei discípulos de todas as nações, batizando-os e ensinando-os…” é a forma apresentada por Mateus (Mt 28:19-20), enquanto Lucas traz no fim de seu evangelho a palavra de Cristo de “que o arrependimento e o perdão de pecados devem ser pregados em seu nome para todas as nações” e no começo de Atos que seu povo recebesse poder para tornar-se testemunha até os confins da terra (Lc 24:47; At 1:8).

 

A ênfase cumulativa parece clara. Está colocada sobre a pregação, sobre o testemunho e sobre o fazer discípulos. Muitos deduzem a partir daí que a missão da igreja, de acordo com a especificação do Senhor ressurreto, é exclusivamente a missão de pregação, conversão e ensino. Mas, “a comissão” inclui mais do que “a tarefa” de ensinar aos convertidos “todas as coisas que Jesus havia anteriormente ordenado” (Mt 28:20), e que a “responsabilidade social” está entre as coisas que ele ordenou. A real comissão em si mesma deve ser entendida incluindo a responsabilidade evangelística, a menos que queiramos ser culpados de distorcer as palavras de Jesus.

 


Por que e como o Pai enviou o Filho?

 

Paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio.(Jo 20:21).

 

A forma crucial na qual a “Grande Comissão” foi entregue a nós (sendo a mais negligenciada porque é a mais difícil) é a Joanina. Jesus havia antecipado esse fato em sua oração no cenáculo, quando disse ao Pai: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu vos enviei ao mundo” (Jo 17:18). Provavelmente no mesmo cenáculo, mas depois de sua morte e ressurreição, Ele transformou “sua oração” declarativa numa comissão e disse: “Paz seja convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio” (Jo 20:21).

Nessas duas sentenças, Jesus fez mais que delinear um vago paralelo entre a Sua missão e a nossa. Deliberadamente e precisamente Ele fez de sua missão o modelo da nossa, dizendo: “como o Pai me enviou, assim Eu vos envio”. Portanto, nosso entendimento da “missão da igreja” deve ser deduzido de nosso entendimento da “missão do Filho”. Por que e como o Pai enviou o Filho?

Logicamente, o propósito principal da vinda do Filho ao mundo foi único. Talvez seja parcialmente por esta razão que os cristãos têm hesitado em pensar a sua missão em qualquer sentido comparável à dEle. Pois o Pai enviou o Filho para ser o Salvador do Mundo e, no fim, para fazer a expiação de nossos pecados e para nos trazer a vida eterna (Jo 3:14-18; 1 Jo 4:9,10,14). De fato, ele mesmo disse que tinha vindo “para buscar e salvar o perdido” (Lc 19:10). Não podemos copiá-lo nessas coisas. Não somos salvadores.

 


Servindo em atos e palavras.

 

“Eis que o meu Servo procederá com prudência; será exaltado e elevado e será mui sublime.(Isaías 52:13).

 

Apesar desses fatos, tudo isso ainda é uma declaração inadequada do porquê Ele veio. É melhor começar com algo mais geral e dizer que “ele veio para servir”. Seus contemporâneos tinham familiaridade com a visão apocalíptica do Filho do Homem recebendo domínio e sendo servido por todos os povos (Dn 7:14). Mas Jesus sabia que tinha que servir antes que fosse servido, e suportar sofrimento antes de receber o domínio (Jo 12:23-28; Ef 1:20-23).

 

Assim, ele fundiu duas imagens do Velho Testamento aparentemente incompatíveis: o “Filho do Homem de Daniel” (Dn 7:13) e o “Servo Sofredor” de Isaías (Is 52:13-53:12). Jesus declarou: “o Filho do Homem veio, não para ser servido, mas para servir e dar sua vida como resgate de muitos” (Mc 10:45). A oferta de resgate pelo pecado foi um sacrifício que somente Ele poderia oferecer, mas isso constituiu o clímax de uma vida de serviço, a qual nós também podemos ter. Ele, deu-se a si mesmo pelos outros em serviço altruísta, e tal serviço abrangeu uma ampla variedade de formas, de acordo com as necessidades dos homens. Certamente, ele pregou, proclamando as boas-novas do Reino de Deus e ensinando a chegada e a natureza do Reino, como entrar nele e como ele se expandiria.

 

Mas, Ele disse em certa ocasião “…, no meio de vós, eu sou como quem serve” (Lc 22:27). E Ele serviu tanto em atos quanto em palavra, a tal ponto que seria impossível separar obras e palavras no ministério de Jesus. Ele alimentou bocas famintas e lavou pés imundos, curou o doente, confortou o aflito e até mesmo restaurou o morto à vida. Agora, nos envia, diz Ele, como “o Pai o tinha enviado” (Jo 20:21). Portanto, nossa missão, como a dEle, deve ser uma: “a de servir”. Ele esvaziou-se a si mesmo de sua condição e “assumiu a forma de servo”, e sua atitude humilde deve estar presente em nós (Jo 13:12-16; Fp 2:5-8).

 


Jesus é o modelo da missão do servo.

 

“Mas entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva;…” (Marcos 10:43).

 

Ele nos providenciou o modelo perfeito de serviço e envia sua Igreja para o mundo, para ser uma Igreja que serve. Não é essencial para nós restabelecer essa ênfase bíblica? Em muitas de nossas atitudes e iniciativas cristãs temos tido a tendência de sermos chefes em vez de servos. Contudo, parece que é em nosso papel de servos que podemos encontrar a verdadeira síntese da evangelização e da ação social. Pois ambos devem ser para nós, como indubitavelmente foram para Cristo, autênticas expressões do amor que serve.

 

Então, há um outro aspecto da missão do Filho que deve ser colocado em paralelo com a missão da igreja, especificamente que, a fim de servir, ele foi enviado para o mundo. Ele não apenas desceu como um visitante de um espaço exterior, ou chegou como um alienígena trazendo sua cultura alienígena consigo. Ele assumiu nossa humanidade, nossa carne e sangue, nossa cultura. Ele realmente tornou-se um de nós e experimentou nossa fraqueza, nosso sofrimento e nossas tentações. Ele chegou a suportar “nosso pecado” e morrer a morte destinada a nós (Is 53; Hb 2:17-18, 4:15).

 

E agora envia-nos “para o mundo”, para que nos identifiquemos com outros, da mesma maneira com que se identificou conosco (sem perder, contudo, nossa identidade cristã), para tomarmo-nos vulneráveis do mesmo modo que Ele se tomou. Certamente, essa é uma das falhas mais características nossas, como cristãos, incluindo nós que somos chamados “cristãos evangélicos”, que raramente parecemos levar a sério esse princípio da Encarnação. Como declara o relatório da Cidade do México, de 1963: “da mesma maneira que nosso Senhor assumiu nossa carne, assim ele chama sua Igreja a assumir o mundo secular. Isso é fácil de se dizer e sacrificial de se fazer” (Witness in Six Continents – Testemunho em Seis Continentes, p. 151).

 

Para nós, é mais natural “gritarmos o evangelho” para as pessoas de uma longa distância do que nos “envolvermos” profundamente em suas vidas, do que nos imaginarmos dentro da cultura delas e de seus problemas e sentirmos solidariamente suas dores. Contudo, não se pode escapar dessa implicação do exemplo de nosso Senhor. Como o Pacto de Lausanne declarou: “afirmamos que Cristo envia seu povo redimido para o mundo, assim como o Pai o enviou, e que isso requer uma penetração de igual modo profunda e sacrificial” (§ 6).

 

Foi o próprio Senhor Jesus quem afirmou:

 

Não é assim entre vós; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva; e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso servo; tal como o Filho do Homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.” (Mt 20:26-28).

 

Então, que quando Ele vier, nos encontre assim, o imitando, seguindo seu exemplo no que diz respeito ao serviço em nossa missão no mundo (Lc 12:42-43; Jo 13:13-17).

 


O texto acima é adaptação do livro de John Stott:
A missão cristã no mundo moderno”;
Editora Ultimato – págs.: 26-28.